Floristics and Economic Botany of Acre, Brazil
Florística e Botânica Econômica do Acre, Brasil
Aspectos Etnobotanicos de Plantas Medicinas na Reserva Extrativista "Chico Mendes"
Lin Chau Ming e Ayrton Amaral Junior
1. RESUMO
Foi realizado um levantamento etnobotanico de plantas medicinais usadas pelos seringueiros na Reserva Extrativista "Chico Mendes", no estado do Acre. São escassos esses tipos de trabalho no Acre, particularmente em Reservas Extrativistas, que são espaços territoriais criados a partir de 1987 pelo Governo Federal, destinados à exploração auto-sustentável e conservação dos recursos naturais por população extrativista. O trabalho pretendeu resgatar e sistematizar as informações populares sobre as espécies utilizadas com relação ao uso terapêutico, identificar as espécies coletadas, conhecer suas características ambientais, gerar informações que subsidiem futuros projetos de exploração econômica, com adequação ecológica e tecnológica, fornecer dados para futuros projetos de pesquisa e de saúde pública, ajudar na manutenção e valorização do saber popular sobre o uso de plantas medicinais e contribuir para a preservação da flora medicinal. O trabalho de campo foi realizado em seis viagens entre novembro de 1991 e fevereiro de 1995, em 18 seringais da Reserva "Chico Mendes", nos municípios de Brasiléia e Xapuri, tendo sido entrevistadas 53 pessoas. A metodologia usada foi a de entrevistas estruturadas e observaçao participante, obtendo-se ao final do trabalho, uma lista com 158 espécies de 61 famílias botânicas. Obteve-se também, dados referentes aos entrevistados (local de residência, nome, idade, sexo, grau de instrução, anos de residência no local, origem, como e com quem aprendeu o uso de plantas medicinais e há quanto tempo usa) e das plantas (nome popular, parte usada, indicação terapêutica, forma de uso e modo de preparo) e da situação social e cultural das comunidades, além das principais doenças e/ou sintomas existentes. O trabalho teve ampla discussão e posterior apoio do Conselho Nacional de Seringueiros (CNS) e dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais de Brasiléia e Xapuri, contando também com o apoio do Parque Zoobotânico da Universidade Federal do Acre e do Jardim Botânico de Nova York. Concluído o trabalho, foi evidenciado grande conhecimento, por parte da população seringueira, dos recursos naturais da floresta e seu uso como medicamento, utilizando espécies de diversos hábitos, com diversas partes usadas, e exploradas dos mais variados ambientes existentes, sob diferentes formas de uso e modos de preparo. Essas características reforçaram o caráter multicultural da população seringueira, misto de tradições indígenas locais com migrantes nordestinos que povoaram a região, a partir do início do século XX, e dos migrantes de outras regiões do Brasil que chegaram a partir dos anos 70. Este trabalho contribuiu também para uma compreensão maior da problemática de saúde, identidade cultural, importância da floresta e das plantas medicinais e assim ajudar na possibilidade de uma maior organização dos seringueiros para a manutenção dessas Reservas e seus habitantes.
INTRODUÇÃO
A flora do estado do Acre apresenta uma diversidade muito grande, maior do que em outras áreas da Amazônia Ocidental (Imac, 1991). Esse patrimônio genético vegetal corre grande risco de ser perdido pois, apesar de se situar numa região ainda pouco ocupada por atividades agrícolas, o estado vem recebendo crescentes contingentes nos últimos anos, e como consequência, o risco de devastação das florestas é uma situação real que deve ser considerada. Dados mostram que nos últimos anos, o índice de alteração da cobertura vegetal tem sido em torno de 5% ao ano (Ufac, 1990), o que permite prever um futuro sombrio a esse respeito, a exemplo da recente colonização do estado de Rondônia.
De sua complexa biodiversidade, existem muitas plantas que sao utilizadas pelas populações, particularmente por seringueiros, para o tratamento de diversas enfermidades, tanto para seres humanos quanto de animais domésticos. Segundo Elisabetsky & Setzer (1987), a coleta de informações dessas populações também é fundamental para se obter e resgatar o conteúdo de aspectos culturais, muitas vezes específicos de cada local e importantes para o uso coerente das plantas.
Um levantamento etnobotânico abordando plantas medicinais permite um melhor conhecimento das plantas e das informações populares já detidas pelas comunidades de seringueiros, possibilita um melhor estudo da reserva genética da flora acreana, bem como serve de incentivo ao incremento de sua utilização por parte dos interessados.
No Estado do Acre, particularmente nas Reservas Extrativistas, os seringueiros também utilizam frequentemente plantas medicinais. Algumas, provavelmente nem são conhecidas pela ciência. Não há ainda, contudo, um trabalho sistemático no sentido de se levantar todo esse potencial genético vegetal. Trabalhos esporádicos têm sido realizados, abordando enfoques diversos em diferentes regiões da Amazônia brasileira [Prance (1972); Schultex (1979); Berg (1980, 1982); Branch (1983); Elisabetsky & Setzer (1987); Berg & Silva (1988); Amorozo & Gely (1988); Di Stasi et al. (1989); Elisabetsky & Castilhos (1990); Figueiredo & Granja e Barros (1991); Oliveira et al (1991) e Vieira (1992)].
Com relação ao Estado do Acre, poucos são os trabalhos que podem ser citados: Kainer (1991) e Emperaire & Delavaux (1992), realizaram levantamentos etnobotânicos gerais, que incluiam plantas medicinais em Reservas Extrativistas. Souza et al. (1992) realizaram estudos etnobotânicos na Floresta Estadual do Antimari. Levantamento sócio econômico da Reserva "Chico Mendes" foi realizado pelo Cns (1992) e Ming & Ferreira (1992), fizeram um primeiro levantamento de plantas medicinais utilizadas pelos seringueiros na Reserva Extrativista "Chico Mendes".
Reserva Extrativista é uma nova modalidade de áreas de conservação, que visa também garantir sustentabilidade social e econômica de suas populações. Oriundas principalmente do Nordeste brasileiro, as atuais gerações de seringueiros acreanos desenvolveram um entendimento e uso dos recursos naturais da floresta, particularmente da flora medicinal, incluindo também espécies não amazônicas, trazidas de seus locais de origem e outras espécies utilizadas por índios amazônicos, com os quais tiveram contato. Este conhecimento, este saber popular, faz parte da cultura acumulada pelas populações seringueiras, que sem um trabalho de estudo e resgate, corre sério risco de ser perdido.
Essa carência de estudos evidencia uma necessidade, cada vez maior, de se intensificar as pesquisas nessa área. Esta pesquisa pretende ser uma contribuição ao trabalho sistematizado que deve ser feito com relação às plantas medicinais. Essa qualificação científica permitirá uma difusão mais ampla e segura do saber popular e de sua valorização pois segundo Matos (1988), a importância da informação popular, constitui-se, no principal critério de seleção de material visando aplicação medicinal.
Desta forma, pretende-se com este trabalho: a)resgatar e sistematizar as informações populares sobre as espécies utilizadas, com relação ao uso terapêutico; b) coletar e herborizar as espécies utilizadas pelos seringueiros; c) identificar botanicamente as espécies coletadas; d) gerar informações que subsidiem a elaboração de uma proposta de exploração econômica, com adequação ecológica e tecnológica; e) fornecer informações e recomendações para futuros projetos de pesquisa nessa e em outras áreas sobre as espécies levantadas; f) gerar informações que contribuam para a elaboração de um Programa de Fitoterapia na rede de saúde; g) ajudar na manutenção do saber popular sobre o uso das plantas medicinais e contribuir para sua preservação.
Visa ainda, de uma maneira mais geral, contribuir para a viabilização social, cultural e política das Reservas Extrativistas, como forma de garantir que populações marginalizadas tenham acesso, organizadas por suas instituições e órgãos representativos, aos mínimos direitos de uma vida melhor e mais digna.
Reserva extrativista - um pouco da luta
O desenvolvimento social e econômico na Amazônia baseou-se décadas atrás, na Amazônia, no aproveitamento de um produto oriundo das florestas, a borracha extraída da seringueira, que junto com a castanheira, foi de grande importância. Em torno delas formou-se uma estrutura social regional que mesmo após a diminuição da importância econômica da borracha, ainda mantém certa influência na economia local (Allegretti, 1987).
A conciliação das necessidades da população seringueira com a conservação dos recursos genéticos da floresta amazônica é possível com a implementação das Reservas Extrativistas. Pelo Decreto nコ 98.897/90, elas são definidas como espaços territoriais especialmente protegidos para uso sustentável dos recursos naturais e em benefício das populações extrativistas (Allegretti, 1994).
A luta pela formação das Reservas Extrativistas remonta as primeiras ações dos seringueiros contra as derrubadas de floresta e expulsão de seus habitantes pelos pecuaristas sulistas que passaram a ocupar o Acre, estimulados pelos incentivos fiscais na década de 70. Com o aumento dessa pressão de desmatamento e expulsões, os seringueiros, organizados pelos Sindicatos de Trabalhadores Rurais, iniciaram novas formas de luta, para tentar deter tal processo.
Os "empates", mobilizações que os seringueiros realizavam nas áreas onde havia equipes de pessoas contratadas pelos fazendeiros para derrubar a floresta, foram instrumentos importantes para evitar os desmatamentos e principalmente para a organização e elevação do nível de consciência dos seringueiros acerca de seus direitos. Mesmo considerando que a maior parte dos "empates" não lograssem êxito, a experiência prática vivida pelos seringueiros foi fundamental para a continuidade do movimento. Os primeiros "empates" ocorreram em 1976 (Revkin, 1990), organizados pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia. Em 1980, Wilson Pinheiro, seu presidente, foi assassinado, a mando dos fazendeiros.
Foi nessa época que Chico Mendes teve sua participação na história política das Reservas Extrativistas. Sempre fugindo da repressão, mas em contato cotidiano com os seringueiros, organizou diversos outros "empates" e ajudou a aumentar o nível de organização dos seringueiros. Em 1985, foi criado o Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), órgão dos trabalhadores para se contrapor ao Conselho Nacional da Borracha, composto apenas por fazendeiros, seringalistas e industriais, marcando a identidade de uma categoria de trabalhadores que vinha representando seu papel numa região que abrangia mais da metade do Brasil (Souza, 1990). Discutia-se à época, a criação de uma Reserva onde as populações locais pudessem continuar seu modo de vida extrativo com a manutenção das áreas florestadas. Em 1986, o projeto Radam Brasil mostrava que o Acre possuia 70% de seu território ocupado por seringais e castanhais dotados de potencial extrativo (Menezes, 1994).
A luta dos seringueiros não se restringia às atividades na floresta. Com a repercussão nacional dos "empates", houve uma maior exposição ao restante da sociedade. Sem que houvesse nenhuma das reivindicações atendidas pelo Governo Federal, os seringueiros iniciaram uma mobilização em Brasília, junto à Assembléia Nacional Constituinte, num momento em que as perspectivas de uma reforma agrária eram favoráveis. Em 1987, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, INCRA, através da portaria nコ 627 criou o Assentamento Extrativista, que somente em 1989 regulamentou a criação de quatro projetos, de São Luiz do Remanso em Rio Branco, Santa Quitéria em Brasiléia, Macaná em Sena Madureira e Cachoeira em Xapuri.
Em 22 de dezembro de 1988, Chico Mendes foi assassinado em Xapuri, fato que se transformou num marco na luta seringueira. A partir de 1990, o governo Federal regulamentou a figura "Reserva Extrativista" no âmbito do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, IBAMA, através do decreto-lei nコ 98.890.
As Reservas Extrativistas, no entanto, devem ser encaradas não somente sob o enfoque conservacionista e ambiental. Não se deve perder de vista as origens do movimento dos seringueiros, que estavam inseridas num contexto politico-sindical, segundo Menezes (1989). A solução dos seus problemas e a autonomia do usofruto dos recursos que exploram passam primeiro, e necessariamente, pela regularização fundiária, das terras que ocupam ou venham a ocupar, respeitada a forma como ela vem se dando tradicionalmente. A componente ecológica desse processo é na verdade, subjacente à questão fundiária e o atendimento à primeira depende de como esta é equacionada.
Caracterização da Reserva Extrativista "Chico Mendes"
A Reserva Extrativista "Chico Mendes" foi criada em 1990, através do decreto nコ 99.144, de 12 de março. Sua extensão territorial é de 970.570 ha, abrangendo 5 municípios do Estado do Acre: Rio Branco, Xapuri, Brasiléia, Sena Madureira e Assis Brasil. É recortada por tributários do Rio Acre em sua maior parte e na porção mais oriental, pela bacia do rio Iaco. As características de vegetação, solos, relevo, clima se assemelham aos descritos para o Estado.(Imac,1991).
Sua área é dividida em 79 imóveis, conforme dados da Assessoria de Planejamento do Estado do Acre, de 1992, cujas denominações não coincidem totalmente com os nomes dados pelos seringueiros. Antigos nomes de fazendas continuam sendo os de seringais. (ex.: Agropecuária Independência é conhecida hoje como parte do seringal Independência). Outros foram alterados como por exemplo: área da antiga Fazenda União é conhecida hoje como parte do Seringal São Francisco do Iracema, a antiga Fazenda Alvorada é conhecida atualmente como Seringal Dois Irmãos e as Fazendas Santa Angélica, Santa Barbára e Santa Cecília também fazem parte do Seringal Independência.
Devido a problemas de registro, a soma das áreas dos antigos imóveis não coincide com a área total da Reserva (943.880ha) e também o número de seringais (91 seringais) não coincide com o relatado em Cns (1992a).
Aspectos da vegetacao, solo, relevo e clima.
Conforme Imac (1991), há predomínio de floresta tropical aberta, subdividida em floresta tropical aberta com bambú (do gênero Guadua), floresta tropical aberta com palmeiras e áreas de floresta tropical densa.
Os solos predominantes são: Podzólico Vermelho Amarelo, (PVA eutrófico e PVA álico), além de Hidromórfico Gleyzado Eutrófico (normalmente nas margens dos rios). O relevo é composto por planalto rebaixado da Amazônia ocidental e a depressão do rio Acre e Javari. É caracterizado por uma plataforma regular, em vários locais ondulado, sem formação rochosa. A altitude varia entre 100 e 200m acima do nível do mar. Em alguns lugares da Reserva observa-se a presença de aglomerados ferrugínicos, denominados "canga", que se constituem na única opção de pedra na regiao.
A Reserva "Chico Mendes" está em área de clima quente e muito úmido, com temperatura média anual em torno de 24コC. O trimestre mais quente vai de setembro a novembro, com média das temperaturas máximas de 38コC e o trimestre mais frio vai de junho a agosto, com média das mínimas de 16コC. A precipitação anual está em torno de 2000mm, sendo que no trimestre mais chuvoso (janeiro a março) alcança 800mm e no trimestre mais seco (junho a agosto) alcança média de 150mm. Há ocorrência de estiagem de até 30 dias. É um clima bem definido. Os seringueiros chamam de "inverno" o período das chuvas e de "verão" o período da seca. As principais atividades extrativistas e agrícolas seguem religiosamente essa divisão. O corte da seringa é feito no "verão段acute;iacute;, parando no "inverno", quando se inicia a coleta de castanha. Para o preparo da área de cultivo, a derrubada e a queimada são realizadas no "verão", e o plantio, no "inverno".
Ocupação das colocações
As colocações são "espaços dentro dos quais se desenvolvem o conjunto das atividades para a sobrevivência dos seringueiros", (Allegretti, 1987). Na Reserva "Chico Mendes" existem 1.444 colocações ativas e 39 inativas (Cns, 1992b) com média 530 ha cada. Exploram diretamente a colocação 88% dos seringueiros e 12% utilizam mão de obra de meeiro, agregado ou familiareas como cunhado, irmão, sobrinho ou tio. 80% das colocacoes estão num processo de decadência, o que pode ser verificado pela não existência de novas benfeitorias ou reparo nas casas há mais de oito anos.
Existe também um crescente fracionamento das colocações, com mais de uma família morando numa mesma, principalmente filhos ou parentes. As colocações são divididas a partir do número de "estradas" existentes onde um mínimo de 3 é o exigido. Outras áreas da colocação, como pastos e roçados são de uso comum. A venda de colocações é frequente, quase sempre sem a existência de documentos, (negociação informal). O valor da venda tem por base a floresta, o número de estradas ou de castanheiras e as benfeitorias existentes. Os espaços e limites das colocações são marcadas por rios, igarapés, estradas de seringas e castanheiras e não por cercas. Os varadouros (caminhos no meio da floresta que ligam uma colocação da outra) são de todos, mesmo que seu trajeto passe no quintal de uma casa. São limpos e conservados pelo sistema de mutirão.
Organização social na Reserva
A vida nos seringais, desde a origem, foi marcada pelo isolamento e pela produção individual do seringueiro (Tocantins, 79) apoiado pelo trabalho familiar. Foi a luta pela terra, nos anos 70, em confronto com os fazendeiros do centro-sul do país que marcou profundamente a vida política dos seringueiros, dando-lhes uma identidade e direitos conquistados (Cns, 1992a).
Os seringueiros conhecem organização no sentido político a partir do surgimento dos sindicatos de trabalhadores rurais na região do Vale de Acre-Purus, nos anos 70 e 80. Os primeiros surgem nos anos 70, o de Brasiléia surge em 1975 e o de Xapuri em 1976. Antes dos sindicatos não houve nenhuma entidade que aglutinasse suas lutas e reivindicações. Hoje eles tem diversas formas de organização e elas são elementos básicos para administração e funcionamento das Reservas. Os seringueiros participam diretamente de cooperativas, sindicatos, associações, partidos políticos, comunidades eclesiais de base, etc (Cns, 1992b). A maior participação é do homem, mesmo nas comissões eclesiais, de base e centros comunitários, quando 91,19% da população é católica. Atividades comunitárias, como mutirões para limpeza de varadouros, roçados ou plantio e colheitas também são realizadas, motivadas pela necessidade, assim como são os "empates", liderados pelos sindicatos.
Atividade Extrativista
Na Reserva Extrativista Chico Mendes, a atividade extrativista é a mais importante, atingindo o índice de 70% da atividade produtiva (Cns, 1992b), sendo o restante dividido entre agricultura e pecuária.
O produto mais retirado é o latex, seguido pela castanha. Outros produtos extrativistas (frutas, óleos, resinas e palmitos) representam cerca de 2% do total da renda familiar. A castanha representa cerca de 25% e a borracha, 73%.
a) Látex - O trabalho do corte da seringa começa logo cedo, ao amanhecer do dia, saindo por uma "estrada" (percurso onde localizam-se as seringueiras para o corte).
Segundo os seringueiros, o número mínimo de estradas por colocação é de 3, para que se possa realizar o corte de uma árvore e deixá-la descansar por 2 dias, antes do próximo corte. Assim, a alternância de corte em estradas diferentes permite que a seringueira se restabeleça. O tamanho da estrada varia conforme a localização e o número de seringueiras. Uma estrada, no conceito dos seringueiros, tem que ter uma quantidade de seringueiras suficiente para o trabalho de 1 dia. Pode ter de 100 a 200 árvores, e a distância varia de 2 a 5 km. Emperaire & Delavaux (1992), fizeran um levantamento em uma parte de uma estrada. Ligaram 47 árvores e chegaram a aproximadamente 2,5km, extendendo-se por uma superfície de mais ou menos 20ha. Esses dados de uma certa forma confirmam informações dadas pelos seringueiros e por Allegretti (1987), que estimam em cerca de 300ha a área necessária para uma colocação, que inclui, além das atividades extrativistas, área para agricultura e pecuária. O rendimento de látex varia. Uma média estimada pelos seringueiros é de 6 a 10 litros por estrada por dia. As seringueiras da estrada devem ter um diâmetro que as permitam produzir adequadamente. Três palmos de circunferência (mais ou menos 20cm de diâmetro) é o mínimo, segundo informações obtidas por Emperaire & Delavaux (1992). O período de corte também é respeitado. Corta-se no "verão". O período de chuva inviabiliza a extração.
Depois de colhido, o látex é levado à colocação para o preparo. Na Reserva Chico Mendes, bem como em toda a Amazônia, o látex tem sido preparado de forma diferente de décadas atrás. Praticamente já não se fazem mais as "pelas", grandes bolas de borracha defumada. Por sua ação prejudicial à saúde, esse processo de defumação foi substituído pela PBD (Placa Bruta Defumada), mais rápida e menos prejudicial pois expõem o seringueiro a menores períodos de contato com a fumaça.
Para coagular o látex, além de ácido acético, são utilizados látex de caxinguba (Ficus sp) e outras Moraceae. O látex é deixado coagular em bandejas. Depois é prensado para tirar o excesso de água e posto a defumar. Placas não defumadas ou látex coagulado nas tigelas e prensados ("sernambi") também são produzidos, porém obtém preços mais baixos.
b) Castanha - Segundo dados de Cns (1992b), cada colocação da Reserva Extrativista "Chico Mendes" possui em média 257 castanheiras, das quais, 50% em produção, obtendo por safra, 0,94 lata de 18 litros/castanheira, dando um total de 125 latas/colocação/ano. A exploração da castanha absorve aproximadamente 12,5% da mão de obra familiar, onde os homens representam 80% da força de trabalho e as mulheres, 20%.
Essa produtividade citada não foi referendada nas visitas, pois a área não apresenta uma distribuição homogênea de castanheira. O período de coleta de castanha vai de dezembro a março (chuva). Muitas vezes anda-se horas para chegar aos locais das castanheiras. As perdas podem chegar a 6,5% da produção total: a) ataques de animais(cotias, macacos e outros), 7,4% das perdas; b) furto dos ouriços, 3,6%; c) falta de transporte, 2,6% e d) falta de armazenamento 1,5%. Esses números precisam ser revistos, pois não conferem.
O transporte e armazenamento das castanhas têm sido melhorados devido a programas desenvolvidos pela Cooperativa Agroextrativista de Xapuri, que mantém tropas de animais e entrepostos no interor da Reserva. Além disso, mini-usinas de beneficiamento das castanhas ajudam na melhoria da qualidade do produto.
c) Outros produtos - Dentre outros produtos extraídos da floresta, destaque deve ser dado às palmeiras. Os vinhos de açaí (Euterpe precatoria Mill.), de patoá (Jessenia patoa (Mart.) Burret) e bacaba (Oenocarpus bacaba Mart.) são muito consumidos. O processo de fabricação é simples: após coletados, lava-se e deixa-se os frutos imersos em água quente, a casca e o mesocarpo ficam moles, destacando-se com facilidade da semente. Em seguida passa-se em peneira, misturando um pouco de água e depois é coado em um pano e adoçado. O palmito de açaí e bacaba também são consumidos.
Os frutos mais coletados para consumo são cacau (Theobroma cacao L.); bacuri (Rheedia macrophylla (Mart.) Pl. & Tr.), oricuri (Scheelea princeps (Mart.) Karten) e murmuru (Astrocaryum murumuru Mart.). Com relação a resinas, o óleo de copaíba (Copaifera reticulata Ducke) é o mais usado, para fins medicinais.
Fibras são obtidas de várias espécies. Cestos e paneiros são feitos com o caule de cipó titica (Thoracocarpus bissectus (Vell.) Hart.) ou raíz de cipó-ambé (Philodendron sp). Utilizam-se também de palha de jarina (Phytelephas macrocarpa Ruiz & Pavón) e ubim (Geonona sp). Os produtos feitos com essas fibras não são comumente comercializados, são feitos principalmente para uso familiar.
Agricultura
A agricultura é basicamente para a subsistência da família, com venda de excedente. Representa, conforme Cns (1992b), cerca de 29% da renda familiar. As culturas principais são arroz, feijão, milho, mandioca, frutas e algumas verduras e legumes. O arroz e o milho são vendidos frequentemente e da mandioca é feito farinha que tem um comércio regular.
O processo de preparo da terra inicia-se com a derrubada da mata, queimada e posterior plantio. A área destinada ao plantio é denominada de "roçado". Cada família prepara em média 1 - 1,5ha de terra. O plantio é feito na época de chuva. A área derrubada é utilizada por 3 ou 4 anos, que é finalizada com a colheita da "roça" (mandioca) e deixada "descansar" por vários anos, para nova derrubada, queimada e plantio.
Aspectos da saúde na Reserva
Segundo Cns (1992,a), 75% das famílias não tem acesso aos serviços dos postos de saúde na Reserva "Chico Mendes". Estes postos são constituídos por uma casa de três cômodos (ante-sala, sala de atendimento e uma pequena farmácia). Possuem parco material, adquiridos pela Secretaria de Estado de Saúde, para problemas de atendimento primário, como vacinas, pronto-socorro e alguns medicamentos. Existem desde 1981, dentro do "Projeto Seringueiro", reivindicação antiga e que hoje funciona de uma maneira muito própria. Seringueiros escolhidos pelas próprias comunidades são treinados pelo CTA - Centro de Trabalhadores da Amazonia, uma organizacao nao-governamental e pela Secretaria Estadual de Saúde e depois contratados pelo Estado, para desenvolver trabalhos de prevenção, orientação e educação, além de atendimentos de primeiros socorros, vacinação e aplicação de soros.
O número de postos existentes na Reserva "Chico Mendes" é de 22 e a distância percorrida em média, da colocação até o posto, é de 2 horas, para 68% das pessoas. Distâncias maiores que 8 horas são percorridas por 19,83 % das pessoas. Os seringueiros referem-se a distância por unidade de tempo e não por unidade de distância. A essa dificuldade é acrescido o fato de não haver medicamentos suficientes nos postos, o atendimento não ser adequado, o horário de trabalho dos agentes de saúde não ser integral e de não serem convenientemente capacitados.
Foram detectados, de acordo com Cns (1992b), 18 tipos diferentes de problemas relacionados à saúde, sendo os principais: gripe (para 18,67% da população); piolho (11,60%); verminose (15,57%); sarampo (6,58); micose/escabiose (7,20%); diarréia (9,55%); picadas de animais peçonhentos (5,27%); leishmaniose (4,65%); anemias (2,85%) e coqueluche (2,61%). Os tratamentos dessas doenças variam, mas a maioria usa remédios caseiros, feitos com ervas, folhas e casca de árvores. Ainda segundo o mesmo trabalho, 75% da população compra remédios alopáticos por conta própria nas cidades ou de marreteiros e é muito grande o índice de auto-medicação. Este índice é de 44,13%. Os curandeiros atendem a 29,54% da população, os agentes de saúde 15,84% e o restante é atendido por pais e/ou vizinhos.
As condições de saneamento são também muito precárias. Os animais domésticos são criados soltos na área próxima à casa. Todo o lixo é jogado no quintal, servindo de alimento para a criação. Não existem sanitários, as necessidades são feitas no "mato", que pode ser na floresta ou capoeira ao redor da casa ou próximo ao igarapé. A água para beber e cozinhar é retirada do igarapé, ou de uma vertente ou cacimba, mas não recebe nenhum tipo de tratamento.
Cronograma das atividades de campo.
O trabalho de campo foi realizado nos seguintes períodos: a) 19 de outubro a 19 de novembro de 1991; b) 08 a 30 de julho de 1992; c) 03 a 21 de setembro de 1993; d) 26 de janeiro a 16 de fevereiro de 1994; e) 15 a 28 de julho de 1994; f) 02 a 25 de fevereiro de 1995. Antes da 1ェ etapa, foram realizados contatos telefônicos e por carta com o Parque Zoobotânico, da Universidade Federal do Acre (PZ-UFAC) e com o Conselho Nacional de Seringueiros (CNS) visando com o primeiro, a um detalhamento das atividades propostas, formas de viabilização e apoio logístico, e com o segundo, a discussão política do trabalho, para o estabelecimento dos direitos e deveres das partes e apoio da comunidade seringueira. Diante da enorme diversidade vegetal existente na Reserva Extrativista "Chico Mendes" e pelo fato de o trabalho contar com o subsídio do Jardim Botânico de Nova York, (NYBG) a proposta de trabalho deveria ser posta à mesa claramente e receber o referendo das organizações dos seringueiros.
Acordo firmado com o CNS para a realização do trabalho
O acordo feito com o CNS, corroborado pela UFAC e NYBG, previa:
1) Coleta do material botânico
2) Prestação de contas das atividades desenvolvidas
3) Oferecimento de cursos de capacitação
a) Para técnicos: realização de cursos de reciclagem técnica a estudantes universitários da UFAC e técnicos de diversas instituições do Estado.
b) Para a população seringueira: realização de cursos sobre coleta de plantas e organização de dados etnobotânicos para a comunidade seringueira.
4) Formação de hortas de plantas medicinais
Deveria ser feita na PZ-UFAC e outra em um seringal dentro da Reserva, de preferência junto ao posto de saúde.
5) Retorno das informações coletadas para à população
Confecção de um manual sobre o uso popular das plantas medicinais, na Reserva Extrativista "Chico Mendes", para ser distribuído aos seringueiros.
Somente após estabelecidos e acordados esses ítens, foram realizadas as viagens de campo. As pesquisas de campo seguiram metodologia citada por Forero-Pinto (1980), Amorozo & Gely (1988), Alexiades (1993) e Etkin (1993) com adaptações conforme as especificidades da Reserva Extrativista.
Escolha de pessoas para serem entrevistadas
Optou-se por estabelecer critérios para a escolha destas pessoas. Elas deveriam ser reconhecidas pela comunidade como possuidores de experiência e tradição no uso de plantas medicinais na terapêutica, além de serem conhecedoras dos recursos naturais e de residirem no local há pelo menos 10 anos, o que garantiria o conhecimento da flora local. Estes critérios foram ditos aos seringueiros-guias e aos líderes das comunidades previamente avisados pelo CNS. Depois disso, numa discussão em grupo, os nomes eram levantados e anotados
Escolha dos seringais a serem levantados
A seleção dos seringais a serem trabalhados foi realizada primeiramente por um critério político do CNS. Deveriam ser onde a organização dos seringueiros fosse mais forte. Foi escolhido o seringal "Porongaba", no município de Brasiléia, onde o CNS, através do STR local já estava em trabalho comunitário. Havia escola do "Projeto Seringueiro" (trabalho de alfabetização organizado por Chico Mendes e atualmente encaminhado pela CTA), o acesso era mais fácil (havia estrada de rodagem que permitia a passagem de veículo tracionado nas chuvas), os líderes sindicais eram mais organizados e a comunidade estava engajada em alguns projetos técnicos do CNS e UFAC (diversificação de espécies arbóreas comestíveis e levantamento florístico). A escolha do segundo seringal também seguiu a mesma orientação.
Com pequenas variações, todos os outros seringais foram selecionados com o aval do CNS e do Sindicato de Trabalhadores Rurais local. Na medida em que o trabalho ia sendo realizado, a confiança dos seringueiros e das lideranças para com o pesquisador aumentava, dando a ele possibilidade de sugestões na escolha de seringais. Isso efetivamente ocorreu, e na tentativa de se abranger continuamente os seringais, na porção centro-leste da Reserva, foram selecionados os seringais daquela área. Ao final do trabalho, foram visitados os seguintes seringais: Albrácia, Barra, Boa Vista, Dois Irmãos, Filipinas, Floresta, Independência, Nazaré, Nova Esperança, Palmari, Palmarizinho, Porongaba, Porvir Novo, Posto Franco, São Francisco do Iracema, São João do Iracema, Sibéria e Vila Nova.
Atividades na base de apoio, coleta e preparo de material vegetal.
Para o trabalho ser melhor aproveitado, optou-se por estabelecer-se uma base de apoio, normalmente escola ou casa do seringueiro-guia durante todo o período do trabalho de campo e a partir dela caminhar para as colocações das pessoas a serem entrevistadas. Todo o aparato de coleta foi deixado nesse local e era observado e manuseado, com curiosidade, pelos seringueiros moradores das vizinhanças. Após as coletas, o material era também processado nesse local, para conhecimento de todos.
A coleta de material vegetal foi feita em duas situações distintas: a) após o entrevistado já ter indicado as espécies utilizadas por ele; b) à medida em que o entrevistado, no campo, ia citando as espécies. A primeira situação ocorria quando a relação entrevistador-entrevistado ainda não estava plenamente à vontade. Já a segunda situação ocorria quando já havia uma informabilidade maior entre as partes.
Preparo dos materiais coletados
As amostras coletadas foram processadas no campo, conforme Balgooy (1987), pelo "método molhado", ou seja, as amostras eram separadas individualmente por folhas de jornal, formando maços. Os maços eram amarrados com barbante e banhados com álcool, até completa saturação dos jornais, e então amarrava-se a boca do saco firmemente. Além de atender a um dos critérios estabelecidos com o CNS, extraindo parte dos compostos químicos solúveis em álcool, este método permitia a conservação do material por um bom período, até o transporte para o local de secagem no PZ-UFAC, em Rio Branco.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Número de entrevistas realizadas
O número acumulado de espécies diferentes citadas por blocos de entrevistas auxilia na determinação da quantidade de entrevistas a ser realizada. A tendência para uma estabilização do número acumulado de citações representa que mesmo realizando mais entrevistas, o seu número não se alterará substancialmente, caracterizando a proximidade do número ideal de entrevistas necessárias. Claro que esse número tem um valor teórico, (Balick, 1994), pois outras situações práticas envolvem a possibilidade ou não de se realizar tais trabalhos no campo. Isso colabora para a resolução de uma das grandes dúvidas em trabalho desse tipo que é a da quantificação do número de entrevistas a serem realizadas. Em Cns (1992a) para o levantamento sócio-econômico da Reserva "Chico Mendes" foram realizadas 94 entrevistas.
Neste trabalho, observou-se que nas 9 primeiras entrevistas, foram citadas 101 espécies, aumentando para 115 quando do final da 18ェ entrevista. Na 27ェ, o número passou a 126, atingindo 150 na 36ェ entrevista. O ritmo de aumento das citações diminui, passando a 158 na 45ェ entrevista e mantendo o mesmo numero na 53ェ entrevista. Nao houve incremento de espécies nas ultimas entrevistas, optando-se assim por encerrar esta etapa de trabalho com esse número de entrevistas.
Idade e sexo dos entrevistados
A idade média dos entrevistados do sexo feminino foi de 44,8 anos, com intervalo de 28 a 75 anos. Já os de sexo masculino tiveram idade média de 47,6 anos, com intervalo de 25 a 69 anos. A média geral foi de 46,2 anos.
A faixa etária mais frequente foi a de 43-48 anos (22,64%), seguida pela de 55-60 anos (18,87%), mostrando que as atividades de curador(a), parteiro (a), bezedor(a) são exercidas por pessoas maduras, com maior experiência. O entrevistado mais novo tinha 25 anos e a faixa etária de 25-30 anos teve 7,55% de frequência. Estes números podem indicar uma natural substituição, paulatina, dos mais jovens no lugar dos mais idosos, à medida em que aqueles vão adquirindo mais experiência, fruto de contato e apredizado com estes.
Dos 53 entrevistados, 20 eram do sexo feminino (37,74%) e 33 eram do sexo masculino (62,26%). Mesmo podendo haver algum desvio por parte da indicação dos seringueiros, o maior número de entrevistados do sexo masculino talvez indique percepção e conhecimentos diferentes em relação às plantas por parte dos 2 sexos. Os homens tendem a ter maior conhecimento de plantas da floresta do que as mulheres, uma vez que são eles que se dedicam, majoritariamente às atividades onde o contato com a vegetação nativa primária é mais intenso. O corte da seringa, a apanha da castanha, a derrubada da floresta, a extração de frutos de açaizeiro, bacaba e patoá e o corte de madeira para fins diversos são exemplos de atividades desempenhadas pelos homens. Já as mulheres detém melhores conhecimentos de plantas que crescem próximo à casa, no quintal, no roçado, na horta. Isso, no entanto, não é regra fixa, pois existem exemplos contrários. Homens podem entender tão bem quanto as mulheres de plantas que não sejam da floresta e vice versa.
Origem dos entrevistados
Das mulheres entrevistadas, 19 eram nascidas no Acre (95%), todas em seringais e 1 era paranaense (5%). Já dos homens entrevistados, 26 eram acreanos (78,78%), 5 eram amazonenses (15,15%), 1 era cearense (3,03%) e outro era mineiro (3,03%). Dos 53 entrevistados, 45 (84,90%) eram acreanos. Ainda que não tenham sido verificadas totalmente as informações, boa parte do número de pais dos entrevistados era originária do Nordeste, confirmando o intenso fluxo migratório que ocorreu em meados deste século. Avaliando conjuntamente a idade dos entrevistados, é possível inferir que trata-se da 3ェ ou 4ェ geração de filhos dos nordestinos que se estabeleceram no Acre, junto com migrantes mais recentes de outros Estados, ocorrido nos anos 70-80. Esses números são próximos aos dados de Cns (1992a), que afirmou que 95% da população da Reserva é acreana.
Tempo de residência no local
A média de residência dos entrevistados no seringal foi de 26,8 anos. Como a média de idade foi de 46,2 anos, confirma informação não sistematizada, que é a de haver migração interna, entre seringais. Muitos seringueiros nasceram e ainda continuam no mesmo seringal mas outros fizeram mudança. Foi comum observar algumas situações de mudança de colocações ou seringais.
Mesmo assim, essa média reflete um bom tempo de residencia no mesmo local, ajudando a ter mais conhecimentos sobre a flora da região. O intervalo de residência entre os entrevistados foi de 10 a 59 anos. A indicação dos entrevistados pelas lideranças e comunidades locais foi precisa. Todos estavam enquadrados nos critérios levantados e o tempo de residência no local veio somente confirmar isso.
Grau de instrução
Os dados acerca de alfabetização dos entrevistados indicaram que 45,28% são analfabetos, 45,28% não o são e 9,44% tem pequenas noções de escrita e leitura. O índice de alfabetizados foi conseguido com base principalmente nas respostas à pergunta direta, não havendo procedimento para sua verificação ou não, salvo algumas observações que comprovaram o saber ler e escrever. Com relação ao sexo, 50% das entrevistadas eram analfabetas, 5% tinham pequenas noções e 45% eram alfabetizadas. Entre os homens, 42,42% eram analfabetos, 9,43% tinham pequenas noções e 48,15% eram alfabetizados.
Na Reserva "Chico Mendes", conforme Cns (1992b), 90% das famílias eram atendidas pelas 86 escolas localizadas na Reserva. O esforço dos seringueiros, através de trabalho do CTA e de outras entidades, vem tendo resultados positivos, e isso talvez explique o maior percentual de alfabetizados.
Os dados obtidos mostram que o índice de analfabetismo é maior em pessoas de maior idade. Faixas etárias mais novas tem menor índice de analfabetismo, mostrando os resultados na alfabetização de adultos nos segmentos mais novos. Isso pode colaborar na consolidação de processos de repasse de informações pela via escrita, aumentando a abragência e eficiência.
Aprendizado: início e origem
Todos os entrevistados afirmaram que o aprendizado adquirido no uso de plantas como medicamento foi através dos pais, parentes e/ou vizinhos. Quatro deles (7,54%), disseram ainda que tiveram contatos com índios, com quem complementaram a experiência. O conhecimento, de pai para filho, a observação direta das atividades dos pais, é a forma mais tradicional de transferência das informações. A geração anterior, na Reserva, ainda não mantinha maiores contatos com o atendimento primário de saúde da rede pública, fortalecendo a necessidade do uso de produtos da floresta. Todos também afirmaram, sem precisar a idade, que desde pequeno, ou desde criança ou "desde que me conheço por gente", iniciaram a observação e o uso das plantas.
"Eu conheço bastante, mas só porque a gente usa por causa de morar muito perto dessa mulher e ela tratava a gente muito com essas plantas, ela curava muita gente, ia muita gente daqui desses lados lá na casa dela prá ela ensinar e fazer remédio e ela fazia, mas agora ela está doente, ela sofre de câncer, mas ela não é tratada com remédio de farmácia não, só remédio caseiro. (J.M.S., Seringal São Francisco do Iracema).
"Foi minha sogra que ensinou a fazê remédio. Minha vó, elas que me ensinavam. Já desde a idade de uns doze anos que elas me ensinavam." (M.C.N., Seringal Independência).
"Foi minha mãe que me ensinou a usar plantas como remédio, desde criança" (V.P.S., Seringal Independência)
A presença de jovens que já estão tendo experiência no uso de plantas medicinais, associado com o fato de haver maior índice de alfabetização nas faixas etárias mais novas, pode indicar uma possibilidade de se iniciar um trabalho educativo no sentido de repassar mais esses conhecimentos através dos jovens, porém calcados nas experiências dos mais idosos, com maiores chances de êxito.
Espécies de uso medicinal citadas, por família, origem e processo de cultivo
Do total das entrevistas, foram citadas 158 espécies vegetais, pertencentes a 61 famílias botânicas (Quadro 1). Das espécies amazônicas, 11,80% são cultivadas enquanto que 53,03% não o são. As espécies restantes (35,17%) são plantas introduzidas, não amazônicas e cultivadas. O total de plantas cultivadas, representa pouco menos da metade (46,97%) do todas das espécies citadas, com resultados próximos aos encontrados por Branch & Silva (1983), em Alter do Chão, Pará e Amorozo & Gely (1988). Isso indica um continuado processo de domesticação de plantas pelo seringueiro, em diversas formas e estagios. O fato de mais da metade das especies cultivadas ser introduzida reflete a introdução de espécies de outros locais, pelo fluxo migratório observado no Acre. Os nordestinos que foram à Amazônia levaram consigo, além de esperança por uma vida melhor, plantas medicinais comumente usadas em sua região. Podem ser citados como exemplo, a catinga de mulata (Tanacetum vulgare L.), a losna (Artemisia absinthium L.) o jucá (Caesalpinia ferrea Mart), o mastruz (Chenopodium ambrosioides L.) e o capim santo (Cymbopogon citratus (DC.) Stapf.), conforme é atestado em Braga (1976) e Matos (1987) que relacionaram plantas medicinais do Nordeste.
O processo de conhecimento e aproveitamento dos recursos genéticos vegetais de floresta é confirmado pelo maior número de plantas amazônicas utilizado (64,83%) do que plantas não amazônicas (35,17%). Apesar do pouco tempo de migração e mudança de ambiente, os seringueiros se amoldaram à nova situação e souberam, num processo contínuo, conhecer e usufruir o que a natureza do local lhes oferecia.
Quadro 1 - Espécies coletadas, por família botanica.
Amaranthaceae Crista de galo |
Celosia argentea L. |
Amaryllidaceae |
|
Cebola brava |
Eucharis cyanaeosperma Meerow |
Anacardiaceae |
|
Cajazeira Cajueiro Mangueira |
Spondia mombin L. Anacardium occidentale L. Mangifera indica L. |
Annonaceae |
|
Araticum cagão Graviola |
Annona montana Macfayden Annona muricata L. |
Apiaceae |
|
Chicória Erva doce |
Eryngium foetidum L. Foeniculum vulgare P. Miller |
Apocynaceae |
|
Carapanaúba |
Aspidosperma vargasii A.DC. |
Castanha elétrica Quina quina |
Thevetia peruviana Pers. Geissospermum sericeum (Sagot) Benth. |
Sucuba |
Himatanthus sucuuba (Spruce ex Muell.Arg.)Woodson |
Araceae Aninga |
Dieffenbackia sp. |
Cipó ambé Milho de cobra |
Philodendron sp. Dracontium loretense Krause |
Arecaceae |
|
Açaizeiro Coco da Bahia |
Euterpe precatoria Mart. Cocos nucifera L. |
Jacitara Jarina |
Desmoncus mitis Mart. Phytelephas macrocarpa Ruiz & Pavón |
Murmuru Ouricuri |
Astrocaryum murumuru Mart. Scheelea princeps (Mart.) Karsten |
Paxiúba |
Iriartea deltoidea Ruiz & Pavón |
Asteraceae Agrião/Jambú |
Acmella ciliata (H.B.K.) Cassini |
Anador Assapeixe |
Artemisia verlotorum Vernonia albifita Gleason |
Benedita Boldo/Elixir |
Zinnia elegans Jacquin Vernonia condensata Baker |
Carrapicho agulha Catinga de mulata |
Bidens pilosa L. Tanacetum vulgare L. |
Cravo de defunto Losna |
Tagetes patula L. Artemisia absinthium L. |
Marcela Língua de vaca |
Egletes viscosa Elephantopus pseudelephantopus |
Bignoniaceae |
|
Cipó cravo Marupá |
Tynanthus fasciculatus Miers Jacaranda copaia (Aublet) D.Don subsp. Spectabilis (Mart ex. A.P. de Candolle) A. Gentry. |
Pariri |
Arrabidaea chica (Humb. & Bonpl.) Verlot |
Pau d段acute;iacute;árco roxo Cipó curimbó Inhuquília |
Tabebuia sp. Tanaecium nocturnum (Barb. Rodr.) Bur.& K. Schum. Martinella obovata (H.B.K.) Bureau & K.Schum. |
Bixaceae Urucum |
Bixa orellana L. |
Boraginaceae |
|
Confrei |
Symphytum officinale L. |
Brassicaceae |
|
Couve |
Brassica oleracea L. var. acephala DC. |
Burseraceae Breu mescla |
Protium rhynchophyllum (Rusby) ined. |
Breu vermelho |
Tetragastris cerradicola Daly (sp.nov.) |
Caesalpiniaceae Jataí Jatobá Jucá Copaíba Cipó escada Pata de paca |
Hymenaea courbaril L. Hymenaea intermedia Ducke Caesalpinia ferrea Mart. Copaifera reticulata Ducke Bauhinia sp. Bauhinia sp. |
Manjirioba |
Senna occidentalis (Linn.) Link. |
Capparidaceae |
|
Muçambê |
Cleome spinosa Jacq. |
Caprifoliaceae Sabugueiro |
Sambucus mexicana C.Presl ex.D.C.var. bipinnata Sambucus australis Chamisso Schwerin (Schlechtendal & Chamisso) Schwerin |
Caricaceae |
|
Jaracatiá/Mamuí Mamoeiro |
Jacaratia digitata (P. & E.) Solms Laubach Carica papaya L. |
Cecropiaceae |
|
Embaúba |
Cecropia polystachya Trécul |
Chenopodiaceae Mastruz |
Chenopodium ambrosioides L. |
Clusiaceae |
|
Lacre |
Vismia guianensis (Aubl.) Choisy |
Convolvulaceae Batata de purga/Batatão |
Operculina hamiltonii (Vahl) Austin & Staples |
Costaceae |
|
Orelha de anta/Orelha de onça |
Costus scaber R. & P. |
Crassulaceae Corama |
Kalanchoe pinnata (Lamarck) Persoon |
Cucurbitaceae |
|
Aboboreira Buchinha |
Cucurbita pepo L. Luffa operculata (L.) Cogniaux |
Maxixe Melancia |
Cucumis anguria L. Citrullus lanatus (Thunb.) Matsumura & Nakai |
Melão de São Caetano |
Momordica charantia L. |
Cyperaceae Tiririca |
Cyperus sp. |
Euphorbiaceae |
|
Assacú Mamona |
Hura creptans L. Ricinus communis L. |
Pinhão branco Pinhão roxo |
Jatropha curcas L. Jatropha gossypifolia L. |
Quebra pedra Seringueira |
Phyllanthus cf. niruri L. Hevea brasiliensis (Willd.ex Adr.Juss.)M.Arg. |
Fabaceae |
|
Cumarú de cheiro |
Torresea acreana Ducke |
Mulungu |
Erythrina sp. |
Tachi preto |
Tachigali rusbyi Harms |
Iridaceae Marupari |
Eleutherine bulbosa (Mill.) Urban |
Icacinaceae Surucuína |
Humirianthera cf. ampla (Miers) Baehni |
LAMIACEAE Alecrim |
Rosmarinus officinalis L. |
Alevante Alfavaca |
Mentha cf. citrata Ehrhart Ocimum campechianum Mill. |
Hortelã Malvarisco |
Mentha x piperita L. Coleus amboinicus Lour. |
Melhoral Oriza |
Coleus barbatus L. Pogostemon heyneanus Benth. |
Poejo Rubim |
Mentha pulegium L. Leonurus sibiricus L. |
Trevo roxo/Hortelã Rox Vick |
Scutellaria agrestis St. Hil. ex Benth. Mentha cf. arvensis L. |
Lauraceae |
|
Abacateiro Canelão |
Persea americana Mill. Aniba canelilla (H.B.K.) Mez |
Lecythidaceae |
|
Castanheira |
Bertholletia excelsa Humb. & Bonpl. |
Liliaceae Alho |
Allium sativum L. |
Milindro |
Asparagus sp. |
Malvaceae Algodoeiro |
Gossypium barbadense L. |
Quiabo Relógio |
Abelmoschus esculentus (L.) Moench Sida rhombifolia L. |
Vinagreira |
Hibiscus sabdariffa L. |
Meliaceae Aguano |
Swietenia macrophylla King |
Cedro |
Cedrela odorata L. |
Moraceae |
|
Caucho Caxinguba |
Castilla ulei Warburg Ficus sp. |
Gameleira Tatajuba |
Ficus sp. Maclura tinctoria (L.) D. Don ex Stend |
Musaceae |
|
Banana roxa |
Musa sp. |
Myrtaceae Goiabeira |
Psidium guajava L. |
Myristiceae |
|
Sangue de boi |
Iryanthera juruensis Warburg |
Nyctaginaceae João mole |
Guapira sp. |
Bonina |
Mirabilis jalapa L. |
Passifloraceae Maracujá |
Passiflora edulis Sims |
Pedaliaceae |
|
Gergelim |
Sesamum indicum L. |
Phytolaccaceae Tipi |
Petiveria aliacea L. |
Piperaceae |
|
Capeba Erva de jaboti |
Pothomorphe peltata (L.) Peperomia pellucida (L.) H.B.K. |
João brandim Oleoelético |
Piper ottonoides Yuncker Piper callosum H.B.K. |
Pimenta longa |
Piper hispidinervum |
Poaceae Cana |
Saccharum officinarum L. |
Capim santo Milho |
Cymbopogon citratus (DC.) Stapf Zea mays L. |
Sapé Taboca |
Imperata brasiliensis Trin. Guadua weberbaueri Pilger |
Polygalaceae |
|
Benguê |
Polygala acuminata Willdenow |
Portulacaceae Amor crescído |
Portulaca pilosa L. |
Manjogomes
|
Talinum triangulare (Jacquin) Willdenow Talinum paniculatum (Jacquin) Gaertner |
Rubiaceae Genipapo |
Genipa americana L. |
Unha de gato Valmoura |
Uncaria guianensis (Aublet) Gmelin Hamelia patens Jacq. |
Vick Pariquina |
Faramea corymbosa Aublet Chomelia paniculata (DC.) Steyerm. |
Rutaceae |
|
Lima Limão |
Citrus aurantifolia (Christm.) Swingle Citrus limon (L.) Burm. |
Matapira Tangerina |
Galipea longiflora Krause Citrus reticulata Blanco |
Scrophulariaceae |
|
Vassourinha |
Scoparia dulcis L. |
Smilacaceae Cipó 3 quinas |
Smilax sp. |
Solanaceae |
|
Camapu Fumo |
Physalis pubescens L. Nicotiana tabacum L. |
Jurubeba Manacá |
Solanum sp. Brunfelsia grandiflora D. Don |
Tomateiro Velame |
Lycopersicon esculentum Mill. Solanum placitum C. Morton |
Sterculiaceae Cacau |
Theobroma cacao L. |
Urticaceae Cansanção |
Urera sp. |
Urtiga |
Laportea aestuans (L.) Chew. |
Verbenaceae Camará |
Lantana camara L. |
Carmelitana Cidreira |
Lippia alba (Mill.) N.E.Br. Lippia alba (Mill.) N.E.Br. |
Rinchão |
Stachytarpheta cayennensis (Richard) Vahl |
Vochysiaceae Catuaba |
Qualea tessmannii Mildbr. |
Zingiberaceae |
|
Gengibre Açafroa |
Zingiber officinalis Roscoe Curcuma longa L. |
Pteridophyta |
|
Barba de leão Guaribinha/Rabo de guariba |
Trichipteris procera (Willd) Tryon (Cyatheaceae) Phlebodium decumanum (Willd.) J.Smith (Polypodiaceae) |
Pluma da mata/Pluma de paca Especie nao identificada Andiroba (nao coletada) |
Adiantum latifolium Lam. (Adiantaceae) |
Hábito das plantas
Os hábitos das plantas coletadas no presente trabalho foram: arboreo (36,48%); arbustivo (16,98%); sub-arbustivo (11,95%); herbaceo (27.67%); trepador (6.29%) e epifeto (0.63%). Há representantes vegetais de quase todos os hábitos, mostrando que planta de todas os estratos da floresta são usadas como medicamento, conforme também é apresentado por Amorozo & Gely (1988) em Barcarena, Pará. Isso indica um bom conhecimento da flora local por parte das população e também pode servir de referencial no manejo sustentável de espécies medicinais.
Parte da planta empregada no preparo dos medicamentos
A folha (31,63%) é a parte vegetal mais utilizada, seguido pela casca (17,34%), raíz (7,65%), caule (6,12%), flor (6,12%), semente (6,12%), ramo (5,61%), fruto (5,10%), planta inteira (4,59%), látex (4,59%), resina e gema, ambas com 2,55%. Ainda que não tenham sidos verificados esses dados em outros trabalhos, as partes usadas das plantas, particularmente as plantas nativas, podem sugerir estratégias de manejo diferenciados, incluindo a análise do hábito e fenologia das espécies.
As partes usadas pelos seringueiros estão bastante ligadas à compreensão deles de substâncias ativas. O cheiro de muitas folhas são "fedidas" ou com cheiro desagradável, como mastruz e malvarisco, outras são "cheirosas" ou de cheiro agradável como hortelã e capeba, contém óleos essenciais. As partes mais suculentas, como, surucuína (xilopódio) erva de jaboti (folha) confrei (folha), couve (folha) e manjogomes (folha) são usadas como emplastro, devido à presença de mucilagens. Substâncias "travosas" estão presentes em folhas (goiaba) e cascas (cajueiro, castanheira) indicando presença de taninos. O látex é usado diretamente (uso tópico) para feridas, inflamações e dor de dente e a resina pode ser usada diretamente (copaíba) ou em defumação.
Rezas e cantigas para benzimento
A associação de rezas e cantigas no benzimentos para processo de cura é frequente. Faz parte da cultura de diversos povos de todas as regiões brasileiras e outros países latinos e africanos conforme Schultes (1984) e Schultes (1988). Junto com as rezas são utilizadas plantas. As usadas com maior frequência foram a vassourinha (Scoparia dulcis), pinhão branco (Jatropha curcas); pinhão roxo (Jatropha gossypifolia) e alfavaca (Ocimum campechianum). Ramos dessas plantas são molhados em uma solução de água e sal de cozinha e feitos vários "sinal da cruz" enquanto se faz a reza. Schultes & Raffauf (1992), em trabalho realizado com os índios de diversas tribos colombianas, mostraram também associações de rezas e cantigas com plantas para a cura de doenças, confirmando trabalho de Camargo (1985), que também verificou componentes indígenas e africanos nos rituais de cura do Brasil.
"Jesus Cristo curador do mundo com seu manto azul, todo mal ele curou.
Arca, espinhela e campainha. E eu com os poderes de Deus e da Virgem Maria eu curo a minha".
Esta reza, citada por J.N., do Seringal Nova Esperança, é usada para casos de problemas com a coluna vertebral. Após a reza, faz-se 3 movimentos semelhantes à barra, até o queixo ou levanta-se o paciente pelas costas e depois reza-se 1 "Pai Nosso" e 3 "Ave Marias". Outra reza foi citada por V.C., do Seringal Independência, para espantar cobra:
"São Bento, água benta, Jesus Cristo no altar, todo bicho peçonhento que tiver no meu caminho arrede prá eu passar".
Esta reza foi informada pelo Sr. R.S.S., do Seringal Nova Esperanca, para sarar dor de dente, feita com o polegar em cima do dente afetado.
"Andava José e João
pelo Rio de Jordão.
José sentou-se
e João perguntou:
Que é que tu tens, José?
- Dor de dente.
Livre e são se tiver no tutano,
venha para o osso,
do osso venha para a carne,
da carne venha prá pele,
da pele prás ondas do mar
sagrado sem fim".
A utilização de plantas de rituais de povos africanos em rezas de origem católica evidencia a influência que os negros tiveram nos antecessores dos seringueiros, de origem nordestina ou ainda com caboclos amazônicos. Também reforça a forte influência católica nas comunidades, confirmando dados de Cns (1992b) que afirmou ser de 91,19% a opção religiosa católica entre os seringueiros. Rituais utilizando plantas alucinógenas não foram observados. O uso do "Santo Daime", prática oriunda dos índios da região, observado em um dos entrevistados, não tinha objetivo imediato de cura, porem, segundo ele, possibilitava receber dos espiritos, informacoes sobre ela.
Ambientes explorados, domesticação e intercâmbio de plantas
A rica diversidade vegetal, o contato com povos indígenas da região, os costumes trazidos pelos antecessores nordestinos e outros migrantes, o aprendizado com parentes, vizinhos e o intercâmbio de plantas fez com que se estabelesse uma situação muito particular no uso dos recursos vegetais na Reserva Extrativista. Sendo a maior parte das plantas utilizadas oriundas da própria floresta nativa, associada à forma extrativista de se manter economicamente, o acesso, a coleta desse material se dá diretamente nos seus ambientes de ocorrência natural. Não é preciso plantar, ter perto de casa muitas dessas plantas, basta ir coletar na floresta ou em outro ambiente natural, hábito oriundo dos indígenas. Os seringueiros têm identificados os locais onde encontram tais plantas, para maior facilidade quando houver necessidade de se obtê-las.
" Não é difícil encontrar copaíba na mata. Só não tem aqui, mas alí embaixo tem, na casa do Raimundo tem também". ( J.R.S., Seringal Filipinas).
Quando não é planta arbórea, as plantas são localizadas por alguns referenciais físicos, geográficos, como " ao longo dos varadores e "perto do roçado".
Muitas plantas nativas estão em processo de domesticação. A cajazeira, castanheira, cedro, araticum, murmuru, oricuri são alguns exemplos de plantas arbóreas que já começam a ser plantadas perto das casas ou são mantidas quando ocorre a derrubada para instalação inicial da casa ou para a agricultura.
Plantas arbóreas pioneiras, ocorrentes em áreas desmatadas ou nas bordas de floresta, como o lacre, a sucuba e a embaúba, são deixadas, mesmo quando há a necessidade de se roçar a área. Plantas herbáceas ou arbustivas também estão em processo de domesticação. A castanha-elétrica, urucum, batata-de-purga, alfavaca, inhuquilia, pariri, marupari e agrião são cultivadas nos quintais ou jardins das casas.
" Aquele pariri fui eu que plantei lá. Este outro pé quando chegamos já tinha, alguém plantou." (J.F.S., Seringal Porongaba )
Outras plantas ocorrem espontaneamente em áreas que sofreram pressão antrópica. O benguê, a língua de vaca, o carrapicho agulha ocorrem com grande frequência nas áreas mais iluminadas ao longo dos varadouros ou margeando os campos. Já o camará, rinchão, assapeixe, sapé, goiabeira, relógio, unha de gato, vassourinha, guaribinha são encontradas em campos ou capoeiras novas.
" A língua de vaca, muitas vezes esse do campo a gente não usa, por causa dos animais, ou o animal urina por lá encostada ou defeca naquela planta, já fica afetada. A gente somente usa mais trazida do roçado." (P.G., Seringal Sibéria).
Nas proximidades das casas, as plantas espontâneas mais comuns foram, erva de jaboti, agrião, muçambê, chicória, rubim, tipi, urtiga, indicando as espécies que algum dia foram plantadas e acabaram por se tornar ruderais.
" A chicória não é planta da mata, é de casa, na mata não tem chicória não, a gente planta e espalha, espalha muito". ( J.A.M., Seringal Porangaba ).
Já nas áreas destinadas ao roçado, logo nos primeiros anos, as espécies mais encontradas foram: capeba, manjogomes, melão de são caetano, camapu e quebra pedra.
As plantas não amazônicas sao cultivadas principalmente nas áreas destinadas à agricultura, como maxixe, melancia, mamona, banana roxa, maracujá, gergelim e cana de acucar. Sempre perto das casas, áreas contíguas ao roçado são destinadas aos "legumes", designação que trata das espécies olerícolas e junto com elas são cultivadas espécies medicinais, como o malvarisco, erva doce, anador, benedita ( que também é cultivada como ornamental), couve e alho. Outras são cultivadas nas imediações da casa, em pequenas hortas ou jardins, como anador, capim santo, boldo, catinga-de-mulata, cravo-de-defunto, losna, confrei, mastruz, corama, pinhão-roxo, pinhão-branco, alevante, oriza, poeja, trevo roxo, vick, milindro, bonina, amor crescido, arruda, tomateiro, carmelitana, cidreira, gengibre e açafroa. Muitas delas são cultivadas em latas, potes, bacias ou outro recipiente.
" O mastru e uma planta que a gente planta no terreiro, em volta da casa, já previsando essas coisas." ( F.S.A., Seringal Dois Irmãos).
" O senhor pode pegar a latinha lá, de milindro?" (M.G.S., Seringal Sibéria).
As plantas arbóreas exóticas são cultivadas próximo às casas. Mangueiras, laranjeiras, limeiras, limoeiros, cajueiros, coqueiros, abacateiros, tangerineiras são cultivadas também para o aproveitamento das frutas. Já o jucá tem uso exclusivo medicinal.
A domesticação das espécies está ligada ao ambiente explorado e à necessidade de uso das plantas. Plantas usadas para problemas mais usuais estão mais perto das casas, normalmente cultivadas ou em processo de domesticação. Todas as espécies exóticas independente do uso ou hábito foram também plantadas perto das casas, em diversos ambientes, como quintais, roçados, pomares ou em vasos. As plantas amazônicas domesticadas (ou em processo de) representam 11,80% do total das espécies. Isso ocorre à medida em que vai havendo necessidade de se ter as plantas por perto para uso. Ao invés de ter que procurar na floresta, o seringueiro plantou-as perto de suas casas. Mesmo assim, a maior parte das espécies amazônicas não esta domesticada, ficando ainda em seus ambientes originais. Mantendo-se a floresta em suas condições originais e o uso das espécies restrito às necessidades das comunidades, as espécies amazônicas não domesticadas continuarão crescendo em seus locais naturais.
Por amizade, parentesco ou mesmo necessidade, o intercâmbio de plantas é forte, principalmente com as plantas de menor porte, que são mais fáceis de serem transportadas. Mudas em latinhas, em sacos plásticos, pedaços de ramos, estacas e sementes são as maneiras mais comuns de troca de plantas. Mesmo material seco, para uso, é dado para outros seringueiros.
" Nós passamos a plantar o muçambê, trazer de outros lugares para plantar e espalhou por aqui. E daí já várias pessoas tem levado prá casa delas." ( P.G., Seringal Sibéria).
" Eu morava onde mora o seo Benjamim. Era eu mais meu esposo e meus filhos. Aí ele vendeu e fomos lá em Altalira. Alí, aquela horta, será que ainda tem aquela horta? Alí era bem feitinho, tinha verdura, tinha tudo. Não sei se ainda tem uma rama da folha redonda, a inhuquília, será que ainda tem? Vocês viram? Que ficava trepada na cerca?" (M.A.M., Seringal Porangaba).
" Consegui esta muda de hortelã, foi um paranaense, lá da colônia, eu fui na casa dele e vi essa planta e trouxe um pezinho prá mim." ( C.A.A., Seringal Porongaba).
Essas informações são importantes, complementando outras informações já citadas anteriormente para a formulação de uma tecnologia de manejo dos recursos vegetais na Reserva Extrativista. Espécies de capoeira (floresta secundária) terão técnicas diferentes das espécies de floresta primária, assim como dependendo da intensidade de uso (extração) das espécies, poderá haver necessidade de reposição ou enriquecimento das áreas utilizadas.
Aspectos culturais na identificação das plantas O bengê, a a
Os seringueiros, ao longo dos anos habitando a floresta, desenvolveram uma capacidade muito própria de identificar as plantas, que inclui observações de aspectos morfológicos, químicos, de uso, ecológicos e culturais. Essa atividade é utilizada para busca de plantas na floresta e indicação delas para outras pessoas. Muitos deles desenvolveram bastante essa capacidade, tornando-se conhecedores de muitas das caracteristicas da floresta. Essas informações são valiosas para estudos taxonômicos, ecológicos e químicos a serem realizados posteriormente, indicando detalhes morfológicos, de composição dos metabólitos das plantas, ambientes encontrados e manejo.
"Tem também a barba-de-leão, debaixo do igarapé." ( M.C.L., Seringal Filipinas ).
"Tem a capeba que eu trouxe um pé lá de dentro da capoeira". ( F.G.P., Seringal Nazaré.)
"A guaribinha está aí, presa no ouricuri, ela é assim um tipo de piolho de preguiça, ela é toda peluda." (P.G., Sringal Sibéria ).
"O cipó ambé é um que tem só uns carocinhos ( nas raízes ), não tem espinho não." ( M.G.S., Seringal Sibéria).
"O manacá é daqui do mato. Ela dá flor, de cor rosa e depois vai ficando esbranquicento." (C.G.S., Seringal Dois Irmãos).
"A matapira é uma árvore, não cresce muito não, é uma árvore baixa, com folhas graúdas, sempre ela tá florada no mês de março". (J.G., Seringal Sibéria).
"Uns chamam de milho de cobra, outros de batata de jacuraru, que é um calango grande, um calangão amarelo assim. Chama batata de jacuraru porque contam um estória antiga que um cara viu esse calango, cavava lá no toco, aquela batata, corria, aí brigava com a cobra, quando achava que o veneno, o remédio tava fracassando, ele corria lá, mordia. A cobra mordia ele e ele sentia nada. Ela é rajadinha mesma coisa que a cobra". (J.A.M., Seringal Porongaba).
"O pariri não dá flor, só folha". (C.F.M., Seringal São Francisco do Iracema).
Uma situação interessante é a das plantas "carmelitana/cidreira" e "pariquina/quina-quina". A carmelitana e cidreira são da espécie Lippia alba (Mill.) N.E.Br. cujas pequenas diferenças morfológicas podem indicar variedades, segundo Moldenke (1978). Para os seringueiros, a distinção entre as duas se faz através de sua morfologia, pelo cheiro e pelo uso e essa diferenciação é coincidente entre os entrevistados. Se fossem somadas as citações de carmelitana e cidreira, seria a espécie mais citada no trabalho.
"A carmelitana é prá comida que faz mal e a cidreira é calmante. O cheiro é diferente e a cidreira é maior que a carmelitana". (C.B.A., Seringal Palmari).
"A carmelitana fede e a cidreira cheira, a cidreira tem a folha maior e a carmelitana tem a folha pequena". (C.G.S., Seringal Dois Irmãos).
"A diferença entre a carmelitana e cidreira é o cheiro da folha. A carmelitana é prá comida que faz mal e a cidreira prá dormir". (C.A.A., Seringal Porongaba).
"A cidreira é parecida com a carmelitana só que ela tem outra função. A cidreira é um calmante e a carmelitana serve prá bóia que faz mal". (P.G., Seringal Sibéria).
Já a pariquina, Chomelia paniculata (DC.) Steyerm e a quina-quina, Geissospermum sericeum, (Sagot) Benth. são mais fáceis de serem distinguidas, apesar do mesmo uso(febre e malária) e do gosto amargo da casca e do lenho. Os nomes populares às vezes servem para as duas espécies. Os aspectos externos da casca e do tronco diferem as duas espécies.
" Tem uma que cresce um pau grosso, assim e tem uma que é baixinha, essa é a legítima. A grandona não é bem atrativa e a pequena é mais amarga, é pior. A pequena é do tipo uma goiabeirazinha, ela é baixinha, a casca é lisinha, a grande tem aquele caule esquisito". (F.B.A., Seringal Dois Irmãos).
"A pariquina é diferente da quina quina. A pariquina ela tem uma quinas na madeira e até a casca dela é amarela e ela é ainda mais amarga do que a quina-quina. A pariquina ela também tem o mesmo processo da quina-quina, que a pessoa deve tomar muito pouquinho de cada vez". ( P.G., Seringal Sibéria).
Na taxonomia vegetal dos seringueiros são incluídos critérios relacionados a aspectos ambientais, uso, compostos químicos (constatados pelo gosto, cheiro, cor ou consistência), hábito das plantas, características morfológicas externas e aspectos culturais, num sistema que muitas vezes não são envolvidos todos os fatores ao mesmo tempo, apenas um ou outro critério, ou que utiliza um terceiro para a comprovação ou definição.
O ambiente e hábito ajudam na identificação das pteridópitas. A pluma da mata, como o próprio, nome diz, só é encontrada no chão de áreas cobertas por florestas primárias. A guaribinha é epifita, associada com ouricuri, diferente da barba de leão, que não é epífita e ocorre próximo de cursos d段acute;iacute;água. Aspecto morfológico do rizoma da guaribinha é usado para melhor caracterizá-la ("é peludo"). O uso também caracteriza diferença entre as espécies. O caso da cidreira/carmelita é exemplar.
Os aspectos químicos, assim como as diferenças morfológicas externas são usadas, muitas vezes comparando com outras plantas. Assim, a "química" das plantas são referenciais taxonômicos, como jambú ("trava a língua"), benguê ("raiz com cheiro de vick"), joão brandim ("trava a língua"), quina quina (amarga), lacre ("leite marrom") e surucuína (batata que dá uma "baba").
As diferenças morfológicas externas são as mais usadas na identificação das plantas. Características especiais são associadas, seja de qualquer parte da planta e também comparando com outras espécies ou outros materiais. Assim podem ser citados exemplos como a guaribinha (a caule "é assim um tipo de piolho de cobra"), açafroa ("parece em pé de gengibre, só que a folha é maior"), batata de purga ("é de rama"), cipó ambé ( "tem só uns carocinhos", nas raízes), marupari ("é uma batatinha, uma painerazinha"), milho de cobra ("é rajadinha, mesma coisa que a cobra"), matapira ("árbore baixa, com folhas graúdas"). A cor também é um diferencial. Usa-se a cor de qualquer parte da planta para caracterizá-la. Por exemplo: buchinha ("branca depois de seca"), amor-crescido (flor vermelhinha), manacá ("flor cor rosa, depois vai ficando esbranquicento"), pariri ( "folha quando seca é vermelha"), lacre ("leite amarelo, vermelho"), sucuba ("leite branco"). Fatores de adaptação ao ambiente também são usados. Por exemplo: hortelã ("não dá flor") e idem para pariri.
A elaboração deste complexo sistema taxonômico só foi possível com muita prática e experiência e muitos aspectos são coincidentes com a taxonomia "científica", ficando porém, critérios que só mesmo o longo e direto convívio com a floresta puderam fornecer aos seringueiros.
Doenças mais citadas
O grupo que apresentou maior número de plantas foi o das doenças do aparelho respiratório ( "tosse", "gripe", "resfriados", "catarro", "asma", "bronquite") com 37 espécies para seu tratamento, seguido pelo grupo de afecções cutâneas ("pereba", "isipla" (erisipela), "curuba", "impinge", "tumor" ) com 32 espécies. Em terceiro, o grupo das dores de cabeça e febre com 27 espécies, seguido pelo grupo das dores de fígado, baço e hepatite, com 27 espécies.
No lado oposto, diversas doenças tinham apenas uma espécie usada para seu tratamento, como doença venérea ( cebola brava ), anticoncepcional (copaíba), depurativo de sangue ( batata de purga ), problemas do pré-parto ( jarina ), anestésico ( joão brandim ), epilepsia ( milindro ) e desidratação ( unha de gato ). Ressaltam-se algumas plantas que foram citadas apenas para uma doença, como o agrião ("gripe", "tosse"), surucuína ("picada de cobra" ), quina-quina ("febre", "malária" ), carmelitana ("comida que faz mal") e cidreira ("calmante").
Outro grupo de plantas que merece destaque é o das quais os resultados sao difíceis de serem detectados, de uso mágico, em rituais de benzimentos ou não. Plantas para "dar sorte em caça" ( tanto para o homem quanto para o cachorro ), quebrar "quebrante", afastar ィmal olhadoィ ou usadas para benzimentos. As plantas citadas nesse grupo foram: aninga, alfavaca, cipó curimbó, joão brandim, pinhão branco, pinhão roxo, vassourinha e tipi.
O grupamento das doenças foi feito com base nos conceitos do autor e não dos seringueiros. Conceitos ou definições de doenças por parte deles muitas vezes não correspondem aos da medicina moderna. Por exemplo, "tumor" tem o sentido de uma pústula ou parte infeccionada da pele. "Golpe" pode significar corte ou batida, pancada. Para dor de dente, além do uso de plantas como anestésicos (joão brandim) usa-se látex de diversas plantas que tem a propriedade de "estourar" o dente, sumindo a dor, porém perdendo também o dente. A cura do tétano tem característica interessante. Usam-se tanto espécies com princípios ativos antissépticos (óleo de copaíba, decocto de arruda) como, também emplastro com raspa da casca de paxiúba, que pode conter agentes patogênicos. Podem ter havido nesse grupamento, erros que somente um profissional de área etno-médica poderá resolver.
Plantas mais citadas
As 28 especies mais citadas, em ordem decrescente, com os respectivos numeros de citacoes, foram: copaíba (37), mastruz (34), quina-quina (30), anador (29), carmelitana (24), jatobá (24) , cidreira (23), goiabeira (22), manjirioba (22), cumarú de cheiro (21), boldo (20), malvarisco (20), pariri (19), algodoeiro (19), agriao/jambu (19), araticum (18), alfavaca (17), laranjeira (16), acaizeiro (16), vassourinha (15), hortela (15), surucuina (14), jarina (13), pinhao branco (13), pinhao roxo (13), chicoria (12), tatajuba (11) e castanheira (11). Não foi obtida a importância relativa das espécies, conforme proposto por Friedman et al (1986) in Amorozo & Gely (1988). Este índice permite avaliar a importância das espécies para uma determinada comunidade baseada nas citações e concordância dos usos citados.
As famílias com espécies mais citadas foram: Asteracea (11); Lamiaceae (11); Fabaceae + Caesalpinaceae (10); Arecaceae (7); Bignoniaceae, Euphorbiaceae, Rutaceae , Solanaceae (6 cada); Cucurbitaceae, Piperaceae, Poaceae, Rubiaceae (5 cada) e Apocynaceae, Moraceae e Verbenaceae (4 cada). As três famílias mais usadas representam quase 20% do total de espécies, além disso, a maior parte destas famílias também são as que mais registros existem nos estudos com plantas medicinais no Brasil, conforme Brito & Brito (1993). Tais estudos vem comprovando atividades farmacológicas de diversas espécies destas famílias,. Trata-se pois, da confirmação da validade da indicação popular, quando é visto que as plantas mais usadas popularmente têm apresentado efeitos farmacológicos promissores. Estas famílias contém em si ingredientes ativos que têm essas atividades. Lamiaceae, Verbenaceae, Rutaceae, Piperaceae e parte de Asteraceae e Poaceae contém óleos esencias, com atividade antimicrobiana e antiinflamatória. Já em Euphorbiaceae, Rubiaceae e Solanaceae contém alcalóides. Os heterosídeos estão presentes em Apocynaceae, Bignociaceae, Cucurbitaceae e Fabaceae + Caesalpiniaceae. Esss informações são extremamente importantes no delineamento de um futuro projeto de pesquisa. Pode-se optar por um grupo vegetal de acordo com o grupo químico estudado.
Mistura de plantas
A associação de mais de uma espécie vegetal é comum na terapêutica dos seringueiros e em outras culturas. Não há uma regra rigorosa nas formulações. Nas formulações de "lambedor" (xarope) para tosse, a copaíba, o jambú, o jatobá e cumarú de cheiro entram em várias delas. Abaixo estão representadas algumas formulações com misturas de plantas encontradas, para algumas doenças e/ou sintomas.
erva cidreira + "olho" (broto) de goiaba + sal Þ diarréia
muçambê + alfavaca + limão Þ gripe
tiririca + sapé (raiz) + capeba Þ hepatite
taboca + casca de cedro Þ banho para inchação
muçambê + cravo de defunto Þ dor de cabeça
vinagreira + pariri + goiabeira Þ chá para comida que faz mal e desinteria
cumarú de cheiro + jatobá + cipó escada + jambú + alfavaca + boldo Þ lambedor para tosse
copaíba + cumarú de cheiro + jatobá Þ lambedor para tosse
capeba + taboca (raiz) Þ chá para hidropsia ("barriga d段acute;iacute;água")
quebra pedra + folha melancia + cabelo milho Þ chá para inflamação nos rins
copaíba + mangueira + alho + limão + óleo de copaíba Þ lambedor para tosse.
As espécies que entram em diversas formulações parecem ter importante função sinérgica, tando nos lambedores quanto em decoctos. Estudos farmacológicos posteriores podem ser realizados a partir destas indicações.
Uso de animais e outros produtos na terapêutica
Também foi observada a utilização de outros componentes junto com plantas nos medicamentos. A pena de nambú azul foi a mais citada. As formulações citadas estão apresentadas abaixo:
cupinzeiro + presa de porco do mato Þ chá para pneumonia
pena de nambú azul Þ picada de cobra, hemorragia
casca de ovo Þ hemorragia (chá da casca torrada)
argila de ninhos de alguns hymenopteros Þ para assaduras de pele.
Não foram analisados os modos de preparo e os possíveis efeitos sinérgicos e/ou de composição química destes.
Forma de uso e modo de preparo
Os medicamentos preparados pelos seringueiros com as plantas apresentaram as formas de uso interna e externa. A via interna básica é a oral. Já na externa, foram levantadas: uso tópico, defumação, banhos ou lavagens. Os modos de preparo foram diversos: expressão, maceração, infusão, decocção, tinturas ou garrafadas, lambedores, emplastos, defumações, uso direto. Essa diversidade é fruto das influências culturais adquiridas junto aos antepassados, povos indígenas da região e imigrantes, além de mostrar conhecimentos quanto aos compostos existentes nas plantas e sua melhor forma de absorção pelo corpo.
A expressão é feita batendo a parte da planta em um pilão, colocada em um pano e depois é espremida para a retirada do líquido, normalmente chamada de "sumo" pelos seringueiros. Para facilitar o processo, costuma-se colocar um pouco d段acute;iacute;água antes de espremer. Esse "sumo" é bebido puro ou adicionado a outros líquidos (água ou leite). A maceração é feita deixando a parte vegetal em água fria, dentro de uma vasilha, para posterior consumo, após "deixar descansar" até o dia seguinte. A infusão é feita despejando-se água fervente sobre as plantas colocadas num recipiente, deixando-as em repouso, tapando o recipiente por alguns minutos, para depois tomar. A decocção é feita deixando as plantas em um recipiente com água e levadas ao fogo por um tempo que varia bastante, dependendo das plantas usadas. Quando se usa caule, raízes ou casca, o tempo de fervura é maior. As tinturas são feitas colocando-se as plantas em álcool ou pinga e deixadas por alguns dias antes do uso. Pode haver mistura de plantas. Os lambedores são xaropes feitos a partir de decocção de plantas, que depois são coadas. O decocto é apurado e depois adicionado açúcar ou mel até ficar na consistência ideal. Emplastros são feitos socando-se as plantas até formar uma papa que é colocado na região afetada e amarrada com um pano. É comum ainda fazer um tipo especial de emplastro, murchando as folhas inteiras de algumas plantas com calor ou óleo comestível e colocar diretamente na região afetada, amarrando com pano ou tira. As defumações são feitas queimando-se as partes das plantas em locais apropriadados, para inalação ou contato com a fumaça.
"Esse chá serve para fazer banho, prá limpar pele da criança, uma brotoeja, a gente tem o banho de alfavaca, ela desfaz esse vermelho, a pele fica normal". (A.P.L., Seringal Dois Irmãos).
"Aí a gente pega aquela gosma, aquela baba de mangará da banana roxa, a gente põe no lugar do corte, aí estanca e não tem probabilidade de dar "mal" (tetano)". (C.G.N., Seringal Sibéria).
"A casca da castanheira serve prá fígado, prá essa dor de barriga. No caso, pode pegar a casca, tira aquela casca grossa, põe um litro de água e deixa de molho, aí coa, pode tomar que não tem melhor do que isso, o ano passado eu tive que tomar e só foi uma vez a dor acabou. Corta um palmo ou meio palmo, deixa na água por uma hora, já fica meio amarela. É só tomar, no mais, é duas vezes". (J.F.N., Seringal Floresta).
"O cipó curimbó é usado aqui pelas pessoas que gostam de caçar, fazer banho, mas em outro assunto, ele é muito importante, porque ele é analgésico, pessoa está com dor de cabeça no mato, pega umas folhas dele, machuca, passa na testa, dá um belo sono, mas a dor de cabeça desaparece". (P.G., Seringal Sibéria).
"A gente ferve as folhas do malvarisco bem fervida, prá ficar bem forte, depois que cozinha bem, a gente tira, aí tira as folhas, deixa só o chá e bota açúcar e deixa bastante prá ficar grosso que nem um mel". (R.C.F., Seringal Nazaré).
"O mastruz serve prá várias coisas, a gente usa mais prá ataque de verme. Pega assim, um bocado dela, pisa, aí tira o sumo, dá prá pessoa que tá atacada de verme". (V.P.S., Seringal Independência).
Pode-se perceber conhecimentos desses aspectos associados com os princípios ativos das plantas. Em cortes, usa-se decocto de cascas que contém , além de taninos que são vasoconstrictores, heterosídeos que podem servir como bactericidas. Em dores de cabeça, sao usados emplastros ou chá com plantas com óleos essenciais, que são analgésicos. Produtos amargos de uma forma geral, servem para problemas hepáticos. A partir dos procedimentos de administração e das razões pelas quais os seringueiros utilizam determinadas preparações para determinadas finalidades, será possível obter informações importantes para a pesquisa farmacológica de princípios ativos, além da compreensão do sistema de saúde dessas comunidades.
O cálculo da quantidade de planta colocada no preparo era realizado de uma forma muito empírica, no "olho", porém com a devida noção prática de seu potencial terapêutico, percebido por seu gosto ou cor. A quantidade do preparado a ser ingerida também era calculada sem o rigor científico, porém a prática e experiência a balizava, levando em conta a concentração do preparado (quantidade de planta colocada e tempo de fervura) e também o peso da pessoa.
CONCLUSÕES
Quanto às atividade preliminares do trabalho
O grau, nível de organização e consciência da comunidade trabalhada, em sua relação com o pesquisador, definem, muitas vezes, aspectos importantes da metodologia, sua efetividade a campo e os resultados alcançados. Por mais que, "a priori", o pesquisador estabeleça algumas metodologias, objetivos, estratégias e metas a serem alcançadas, a sua adaptação às condições da organização local é necessária, numa relação que pode acabar alterando a perspectiva inicial, fundindo-se em uma nova situação.
Os questionamentos que o CNS fez, através de sua presidência e assessores técnicos quando da intenção de se iniciar os trabalhos no Acre, evidenciou a necessidade de se fazer um acordo entre as partes envolvidas, que satisfizesse tanto os interesses dos seringueiros, representados pelo CNS, quanto dos pesquisadores, representados pelo NYBG, UFAC-PZ e pelo próprio autor. As obrigações e direitos de ambas as partes na PZ-UFAC foram seguidos à risca.
A elaboração do manual do uso popular, intenção manifesta desde o primeiro momento, só foi viabilizada após muitas articulações com organizações não governamentais, sendo obtido apoio da Rainforest Alliance, de Nova York e já foi finalizado, tendo sido entregues no final de 1997 em Xapuri. O manual reforça e dá legitimidade às informações coletadas e sistematizadas ao longo desses anos de pesquisa. Marca também a sempre possível e necessária aplicabilidade dos resultados obtidos, bem como o retorno dessas informações às comunidades geradoras. Mais do que isso, com a participação, como co-autores, de dois seringueiros, Srs. Paulo Gaudêncio e Virgílio Padilha dos Santos, na sua elaboração, o respeito ao direito da propriedade intelectual da comunidade dos seringueiros da Reserva Extrativista Chico Mendes é reforçado, visando sua garantia.
Quanto à execução dos trabalhos no campo
É sempre difícil e dispendiosa a realização de trabalho de campo quando a pesquisa é feita em local muito distante da origem dos pesquisadores. A organização de todo o aparato de coleta de campo, a infraestrutura de apoio necessária, os recursos para manutenção e deslocamento exigem todo um esquema que vai do PZ- UFAC até o meio da floresta, na casa dos seringueiros. Cada viagem para as atividades de campo representou despesas que foram possíveis graças ao apoio financeiro do NYBG, que estabeleceu convênio com o PZ- UFAC. Essa situação confirma o constante em BRITO & BRITO (1993), que detalhou com muita clareza, que os principais centros de pesquisa com plantas medicinais estão muito longe das regiões que contém as maiores diversidades vegetais e que os centros dessas regiões ainda não realizam muitas pesquisas nessa área. Isso reforça um dos itens acertados com o CNS, que foi o de treinar seringueiros e técnicos do estado do Acre para que próximas pesquisas sejam realizadas pelas pessoas da região, sem precisar de gastos de deslocamento tão grandes e com o desenvolvimento tecno-científico local.
Na floresta, o apoio da comunidade seringueira foi fundamental. Deve-se perder aquela impressão errônea, de que na floresta amazônica existem apenas plantas e animais, com sua enorme e fantástica diversidade. Existem também, sim, a população local, que no caso específico do Acre, os seringueiros, há cerca de 100 anos têm mantido contato com as tradições dos povos indígenas e se harmonizando com o ambiente. Na Reserva Chico Mendes, bem como em toda a floresta amazônica, existe um sem-número de caminhos que a entrecorta, levando a locais que só são bem conhecidos por eles. Além disso, conhecidos os objetivos da pesquisa e ganhando sua confiança, os seringueiros tratam de discutir entre si, verificando e apoiando o trabalho. Talvez o mais difícil num trabalho etnobotânico seja, sim, o estabelecimento de uma relação de confiança mútua, sem a qual a qualidade das informações não é obtida. Apesar de todas as dificuldades, isso foi conseguido, reforçando ainda mais a importância do contato e discussão travados com o CNS, que ativou os dirigentes dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais de Brasiléia e Xapuri, que indicaram seringueiros. Mesmo que num primeiro momento objetivaram acompanhar os passos do trabalho e sondar as intenções da pesquisa, estes, ao longo do tempo das atividades, já conhecidas e discutidas com mais profundidade, transformaram-se em companheiros de jornada e professores dos segredos da floresta. As reuniões que eles realizaram previamente nas comunidades e a corrente de informações via "rádio cipó" que foi estabelecida no interior dos seringais ajudaram a criar a situação favorável ao trabalho. A indicação dos primeiros seringais a serem visitados, pelo CNS, poderia parecer uma ingerência ao trabalho, porém deve ser vista como uma opção de resguardo, de segurança, numa atividade extremamente difícil, que é a de pesquisar e coletar plantas medicinais, até que se pudesse ter mais conhecimentos sobre o trabalho realizado. E isso foi sendo obtido com o seu decorrer, sendo que a partir da terceira viagem, a escolha dos seringais foi feita pelo pesquisador, atendendo a seu interesse e às condições de apoio infraestrutural local.
A seleção e indicação dos entrevistados pela comunidade foi perfeita. Todos se mostraram realmente conhecedores da floresta e com experiência no uso de plantas como medicamento, além de ter longo período de residência no local. A atividade de transmissão dos conhecimentos de pai para filhos, entre vizinhos, de geração para geração, foi constatada na pesquisa. Se forem mantidas as condições de sobrevivência social, econômica e cultural, a continuidade dessa atividade também poderá estar garantida.
O gradativo aumento do nível de consciência política dos seringueiros fez com que os itens do acordo com o CNS fossem observados. Não se retirou material vegetal (e nenhum outro) vivo da Reserva e as exsicatas coletadas foram passadas em álcool antes da secagem. E a discussão acerca do porque disso era franca e aberta na comunidade. Isso serviu de "treino" para outros trabalhos de coleta que forem feitos na Reserva.
Quanto à identificação das espécies
A coleta na floresta já é difícil pela altura das árvores, pela dificuldade de acesso e pelas chuvas torrenciais que caem em determinada época do ano, que coincidiu na maior parte das viagens realizadas. Quando as coletas ocorrem esporadicamente, as possibilidades de se obter material fértil é menor. Por isso coletou-se também material estéril. Poderia-se deixar combinado com alguém da comunidade fazer a coleta das plantas nào floridas, em outra época, e depois enviar o material para a UFAC, porém isso foi difícil pela necessidade de se deixar material para coleta, distância dos seringais, dificuldades de acesso e transporte, além de o local da viagem seguinte ser diferente do anterior.
Cerca de dois terços das espécies levantadas são amazônicas. Devido à pouca literatura e pesquisa da flora amazônica, particularmente acreana, as identificaçòes, usando a estrutura científica brasileira, tiveram um limite. Esgotado, foi necessário ir a outro centro, como o NYBG, onde foram feitas as complementações no trabalho de identificação. O fato de, assim mesmo, não terem sido identificadas, ao nível de espécie, todas as plantas, denota a dificuldade de se identificar vegetais em áreas pouco estudadas. A coleta de uma espécie nova para a ciência, Tetragastris cerradicola Daly sp. nov. (breu vermelho, Burseraceae) e de uma que ainda não foi publicada em literatura científica, Protium rhynchophyllum (Rusby) ined (breu mescla - Burseraceae), em uma das viagens é também muito representativa dessa situação.
Quanto aos entrevistados
Os 53 seringueiros entrevistados abrangeram seringais situados na porção centro-leste da Reserva "Chico Mendes". A porção oeste é de acesso mais difícil. Como foi uma amostragem seletiva, isto é, foram trabalhadas apenas as pessoas que atendessem aos requisitos pré-estabelecidos, percebeu-se que a variação do número de espécies citadas por entrevistas era pequena com o passar do trabalho, estabilizando-se nas ultimas entrevistas, situacao semelhante ao apresentada por Balick (1994), que adaptou a curva espécies-área.
O longo período de vivência na floresta, o aprendizado adquirido com pais, parentes, vizinhos e índios, a herança cultural do Nordeste, a experiência e uso prático dos medicamentos à base de plantas permitiram aos seringueiros desenvolver um conhecimento de grande afinidade com as necessidades e condições locais.
Estes conhecimentos, diferentes conforme sexo e idade, vêm demonstrar que a divisão de trabalho na casa dos seringueiros acaba por desenvolver tipos de conhecimentos diferentes no uso das plantas e também a reciclagem que há dessas informações, passando para gerações mais novas, que podem substituir gradativamente as funções realizadas pelos mais idosos. Isso vem ocorrendo há 3 ou 4 gerações. Ainda sobre isso, o conhecimento é passado verbalmente ou acompanhando experiências práticas, uma vez que o nível de alfabetização é baixo, dificultando a manutenção e repasse das informações. O uso de linguagem escrita no repasse dos conhecimentos é muito pequeno.
O uso de rituais também foi uma marca na cultura dos seringueiros. Benzimentos, rezas e outros rituais espirituais mostram a religiosidade associada com o uso de plantas, havendo elementos africanos, caboclos e indígenas, mas de cunho predominantemente católico.
Quanto às plantas citadas e seus usos
O conhecimento adquirido sobre a floresta local, o isolamento existente de outras fontes de informações, o pequeno acesso a sistemas de saúde pública e a carga cultural dos seringueiros determinam a utilização de plantas as quais cerca de dois terço são originárias da floresta local e um terço são plantas não amazônicas. Das especies amazônicas há representantes de quase todos os hábitos e das quais são utilizadas quase todas as partes vegetais. Isso mostra que houve, ao longo do tempo em que habitam a região, um grande aproveitamento das utilidades das plantas da floresta pelos seringueiros e seu uso e que isso vem sendo reciclado no seu cotidiano, incorporando novas informações.
Embora ainda em menor porcentagem, o número de espécies amazônicas cultivadas pode crescer, pois está havendo um lento processo de domesticação das plantas. O nível de domesticação talvez não seja maior pela existência da floresta ainda praticamente intacta na maior parte da Reserva, o que faz com que não haja a necessidade de se ter a planta na casa, tendo ainda alguma tradição da cultura indígena, pois as plantas estão na floresta ao lado, disponíveis quando houver necessidade. Além disso, a baixa demanda colabora para a manutenção dessa situação.
A terça parte das plantas citadas, de origem não amazônica, principalmente européia, indica a influência trazida do Nordeste e também de migrantes de outros Estados, incorporando novas informações aos seringueiros.
O elenco das principais doenças e sintomas ocorrentes junto à comunidade seringueira na Reserva Chico Mendes é a principal referência para a procura e uso de plantas para sua cura ou alívio. São doenças ou sintomas mais comuns do modo de vida da populaçào local e também decorrentes da precariedade das condições sanitárias, de saúde, sócio-econômicas e de alimentação.
Problemas mais simples, como os do aparelho respiratório, afecções cutâneas e febre representaram cerca de 58% de todas as espécies citadas, ou seja, problemas que são possíveis de ser resolvidos no atendimento primário de saúde, muito precário na região, são os que têm maior quantidade de plantas para curá-las.
Muitas espécies têm usos terapêuticos variados e outras espécies têm apenas uma única indicação. A concordância de uso dá uma idéia da importância relativa das plantas utilizadas pelos seringueiros na Reserva "Chico Mendes", podendo servir de referencial para futuras pesquisas farmacológicas, conforme Amorozo & Gely (1988). Espécies citadas mais vezes para uma única indicação podem sugerir pesquisas mais específicas.
A utilização de misturas de plantas para o preparo do medicamento indica uma percepção de ações sinérgicas entre os compostos existentes, constituindo-se em importantes informações para pesquisas posteriores. Algumas espécies parecem ser essenciais no preparo de alguns remédios, particularmente para problemas respiratórios, na forma de xaropes ou lambedores.
Outros problemas comuns na floresta, como picadas de cobra e insetos e málária também têm plantas específicas para o seu combate. Muitas delas têm uso exclusivo, como a surucuína para picadas de cobra e a pariquina e quina-quina para malária. São fortes indicativos para a pesquisa farmacológica.
As mais variadas formas de uso foram observadas, desde infusão, decocto, emplastro, xarope, banhos, fricção, garrafadas e outros, indicando conhecimentos nos compostos existentes nas plantas e sua forma de ação no corpo humano. Também houve uso de plantas associado com medicamento sintético e ainda uso de produtos de origem animal e mineral, denotando a influência da medicina ocidental e reminiscências da cultura indígena e africana, respectivamente.
Contribuição do trabalho na organização e conscientização da comunidade
Junto com as questões de características botânicas e terapêuticas, este trabalho etnobotânico permitiu um contato mais aprofundado dos seringueiros com a problemática de saúde, identidade cultural, da importância da floresta e das plantas medicinais. Tal situação dará maiores condições para que a comunidade organize programas de saúde mais adaptados às reais necessidades locais, com o uso das informações sistematizadas e divulgadas. A elaboração do manual de uso das plantas poderá ser um forte elo de ligação. Além disso, o resgate e a valorização dos conhecimentos populares são fundamentais, para que a cultura popular tenha o real destaque, contribuindo para as fases iniciais na pesquisa com plantas medicinais.
Informações importantes sobre o ambiente dessas plantas e seu manejo serão fundamentais para o aproveitamento sustentado desses recursos naturais e ainda subsidiarão pesquisas interdisciplinares. Também ajudarão a organizar dados acerca das plantas com ação farmacológica e com potencial terapêutico, ganhando com isso a sociedade. O conhecimento das potencialidades dos recursos da floresta ajudará a comunidade a valorizá-los mais ainda e melhor conservá-los e o entendimento do potencial econômico deles permitirá a compreensão dos direitos a que têm sobre a experiência, a tradição e os conhecimentos gerados e armazenados como um direito à propriedade intelectual, cultural e científica, que deve ser respeitada e garantida.
A participação dos seringueiros em diversas etapas do trabalho, a discussão aberta e transparente acerca dos objetivos e problemas do trabalho permitiram uma experiência de valorização dos saberes e culturas da comunidade local e sua própria identidade cultural, além de aumentar o debate sobre as maneiras de se garantir o retorno à comunidade, caso as informações obtidas no trabalho resultem em ganho econômico por alguém ou por alguma empresa. Trabalhos futuros que venham a ser utilizados na Reserva Extrativista, por outros pesquisadores serão analisados mais criticamente, não somente para o conhecimento de seus objetivos e estratégias mas também para se avaliar se estão de acordo com as necessidades da comunidade e quais as formas , condições e garantias de retorno aos seringueiros do trabalho realizado.
Contribuições e projetos futuros na Reserva.
O melhor conhecimento das plantas medicinais utilizadas pelos seringueiros na Reserva Extrativista "Chico Mendes", suas características ambientais, químicas e de uso podem ajudar na elaboraçãode projetos a serem propostos no local, adaptados as situações específicas encontradas durante o trabalho. Mesmo que a implantação dessas propostas dependam de fatores mais gerais da situação política, social e econômica do estado, ao pesquisador não compete se eximir do dever de apresetar e discutir idéias e sugestões para isso. Além do compromisso de ordem pessoal, há o dever estabelecido entre as partes quando do inicio dos trabalhos, concordando com um dos objetivos desse levantamento.
a) Programa de Fitoterapia
Associado com o atual trabalho de saúde nos postos instalados na Reserva "Chico Mendes", pode-se implantar, de modo complementar, uma proposta de utilização de plantas medicinais. As doenças e/ou sintomas mais comuns da população seringueira serviriam como um referencial inicial para a escolha das espécies a serem utilizadas. O atendimento primário nos postos de saúde é uma situação recomendada em todos os sistemas públicos existentes. Um treinamento aos agentes de saúde é fundamental e indispensável para que uma proposta dessa possa ser realizada, e tambem com a participacao dos curandeiros e benzedores/parteiras locais. As plantas a serem utilizadas poderiam vir da própria floresta, em cada colocação, de material preparado pela Secretaria de Saúde ou ainda diretamente de hortos de plantas medicinais, em áreas dos postos de saúde, funcionando como "farmácias vivas". Plantas herbáceas e/ou arbustivas poderiam ser cultivadas nesse horto. Plantas arbóreas continuariam na floresta ou em áreas próximas. Para evitar os erros de utilização das plantas, poderia ser organizada uma pequena coleção de exsicatas para auxiliar no reconhecimento e identificação das espécies usadas. Devido à grande distância de Xapuri, um programa localizado na comunidade ajudaria na rapidez de atendimento, além de se constituir em uma alternativa bastante e conhecida e utilizada pela população local.
b) Programa de Manejo e/ou cultivo das espécies utilizadas
O grau de utilização das espécies medicinais, seja pela própria comunidade seringueira ou uma eventual demanda externa poderá gerar a necessidade de se obter quantidades maiores de material vegetal. Como observado nos dados do trabalho, pouco mais da metade das espécies usadas são amzônicas, não cultivadas. Para essas plantas, particularmente as espécies arbóreas, um programa de manejo sustentável poderia ser elaborado. Dados floristicos e fitossociológicos preliminares já são disponíveis, a partir de trabalhos da UFAC e FUNTAC. Dependendo da parte da planta usada, trabalhos específicos dever ser realizados procurando avaliar a sustentabilidade das espécies, quando utilizados produtos não madeireiros. Frequência e intensidade de extração, evolução das diversas categorias etárias ou de tamanho da população e outros são dados indispensáveis para uma segura avaliação. Espécies arbustivas e/ou herbáceas também poderiam receber experimentações visando avaliar sua sustentabilidade em seu ambiente natural, porém, procedimentos mais acabados, visando aumentar seu grau de domesticação também são necessários. Avaliações de rendimento de biomassa e teor de princípios ativos encontrados nas plantas quando colocadas em ambientes diferentes do original, como diferentes intensidades luminosas, nutrientes e água no solo, bem como época de colheita, são atividades que precisam ser monitoradas para um sério processo de domesticação de plantas medicinais.
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